Era um curso de férias sobre Gestalt na UFRJ.
Depois de cada “vivência”, vinha a parte teórica (a sensação devia preceder o entendimento).
Um dos jogos consistia em relaxar, buscar as memórias mais antigas e escavá-las um pouco mais, numa espécie de arqueologia de si mesmo. Descalço, olhos fechados, deitado no chão, cada um ia rebobinando a própria fita (era um tempo em que se rebobinavam fitas) e resgatando cheiros, cenas, nomes.
Ao abrir os olhos, havia em volta dezenas de lápis de todas as cores, e folhas em branco. Era a hora de pegar qualquer lápis (que, obviamente, não era “qualquer” lápis) e desenhar qualquer coisa (que – logo se saberia – estaria longe de ser “qualquer coisa”).
Concluída a tarefa (melhor: esgotado o tempo para executá-la), sentavam-se todos formando um grande círculo e, um a um, os desenhos eram levados ao centro desse círculo. O autor devia então falar do desenho na primeira pessoa – não “isso é uma árvore”, mas “eu sou uma árvore”. E fazer o mesmo com relação às cores: “eu sou esse verde”, “eu sou esse azul”.
Eu era um peixe azul e verde. Um peixe dentro e fora da água. Um homem-peixe, me afogando onde os peixes respiram. Um peixe-homem, respirando onde os homens se afogam. Minha memória mais antiga era uma crise de asma, um estar afogado simultaneamente na falta e no excesso de ar.
Disputei silenciosamente com uma garota magrinha, quase transparente, a primazia de ser o último ir até o centro e falar. Perdi.
Ela fora a única a pegar um lápis branco, aquele que é sempre o último sobrevivente da caixa, o que permanece intocado quando os demais já se esbaldaram no apontador.
Seu outro lápis era vermelho – a cor que ela mais detestava. Não tinha sido exatamente uma escolha: foi o que sobrou, junto com os inúteis lápis brancos, dada a sua demora em retornar da expedição ao passado.
Seu desenho tinha sido feito em vermelho e recoberto de branco, até se tornar rosa pálido.
“Eu sou cor-de-rosa”, ela disse. “Eu não sou”.
Enquanto eu me debatia (homem submerso, peixe fora d’água) por ser ao mesmo tempo azul e verde, ela, sendo vermelho e branco, chegara a um meio termo, a uma solução de compromisso, e não era nem uma coisa nem outra. Seu cor-de-rosa não era uma decisão, mas uma diluição. Um ponto em que as forças se anulavam.
“Eu sou morna”.
Possivelmente a Gestalt não tenha hoje o mesmo apelo que tinha naquele final dos anos 70, início dos 80, nem garotos com asma e garotas diáfanas façam mais “vivências”, descalços e despidos de suas “couraças”, nos salões da velha Universidade do Brasil. Mas foi entre lápis verdes, azuis, vermelhos e brancos que a ânsia de ser tudo ao mesmo tempo e a tentação do neutro, do inerte, se defrontaram claramente pela primeira vez.
A garota cor-de-rosa não sabe o quanto este anfíbio lhe é grato.
(originalmente publicado em 27 de abril de 2018)
Excelente, como sempre!
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Sempre achei uma josta esse negócio de dinâmicas. Gestalt ou o baralho que seja!
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Muito interessante! Refletindo sobre o quanto a idade nos torna cor de rosa.
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Muito interessante! Refletindo sobre o quanto a idade nos torna cor de rosa.
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Fiz Gestalt umas 2 ou 3 vezes.
Os últimos tem uma ajuda muito grande. Há que ter atenção.
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