Num futuro não muito distante, um acadêmico irá defender sua tese sobre “Argumentação nos tempos das redes sociais – Uma análise pansistêmica e holoepistemológica da práxis comentarial”.
O escopo da sua pesquisa pareceu muito amplo à orientadora, que – orientadoras não mudam nada ao longo dos séculos – decidiu restringir o tema a uma única postagem feita em 2 de setembro de 2020, numa já extinta “rede social”. O acadêmico tentou argumentar (claro, argumentação era seu tema de pesquisa!) que seria proveitoso ter um arco maior de fontes, mas a orientadora foi irredutível (orientadoras não mudam nada etc etc). Vai ser uma única postagem, e, se chiar, um único comentário. O orientando acatou, resignado (orientandos também não mudam).
A postagem, escolhida ao acaso, era uma que começava com “Parir é político” e terminava com “Parir não cabe no capitalismo”.
“O homem é um animal político”, sabia-se há milênios, através de Aristóteles. Viver também era considerado um ato político, por representar um fluxo produtivo de subjetividade – segundo Ubuntu (filósofo de biografia desconhecida, mas cujo nome aparecia no final de vários textos da época). Por que parir não seria político, já que envolve também um fluxo produtivo de subjetividade, líquido amniótico, um anexo embrionário de aspecto esponjoso e, por fim, um filhote da espécie?
O cerne da questão estava em esse fluxo de produtivo de subjetividade, líquido amniótico etc não caber no capitalismo.
Capitalismo era como então se chamava o sistema econômico baseado na propriedade privada dos meios de produção e sua operação com fins lucrativos – em oposição ao Comunismo, sistema baseado na propriedade estatal dos meios de não produção e sua degringolação com fins de prejuízo. Desse segundo sistema só restavam vestígios fósseis.
Os comentários em análise eram:
F.C. de Curitiba: “Mais um post da série “homem passando vergonha nas redes sociais”.
“Homem”, na época, era pejorativo, significando “ser inferior dotado (de preferência, subdotado) de pênis, e que usufrui de privilégios ilegítimos, designados, ao nascer, pelo fato de dispor, por uma falha genética, de testículos, próstata, o já referido pênis e outros órgãos opressores”.
“Passando vergonha nas redes sociais” significava “dizendo algo diferente do que eu penso e que é a verdade absoluta e inquestionável”.
Essa “argumentação”, com variações, podia ser usada para “branco” (ser inferior, melaninamente deficiente), “hétero” (ser inferior, sexualmente limitado), “rico” (ser inferior, monetariamente beneficiado) etc. Ela se bastava por ser, per se, um argumento irrefutável sem precisar conter argumento algum.
L.B., de Porto Alegre: “Tiraram do contexto”.
“Contexto” era um lugar mitológico de onde se tiravam todas as frases sem sentido. Era uma representação do vácuo, do vazio absoluto, já que o que não faltava era frase sem sentido, e todas tinham sido tiradas de lá.
A questão de que mulheres devam ter o direito de escolher o tipo de parto que querem, e que seja uma violência induzi-las a algo que vá contra sua vontade, passava ao largo. Bem como a evidência – fartamente comprovada – de que o capitalismo permitiu avanços científicos que resultaram em gravidezes e partos mais seguros. A postagem se apropriava de uma causa justa para fazer proselitismo ideológico, se valendo de uma prosa poética duvidosíssima.
Foca no comentário! bradou a orientadora. E copia pelo menos 247 citações, porque se a bibliografia tiver menos de 20 páginas, eu nem leio.
E lá irá o coitado, mais um homem passando vergonha no meio acadêmico, a procurar citações tiradas de contexto para concluir sua tese sobre uma postagem feita em 2 de setembro de 2020, num tempo em que ainda existiam redes sociais, espaços míticos onde estranhos exercitavam, a qualquer pretexto, sua aversão ao diálogo.