Obrigratidão

rotulos

– Obrigratidão.

– Como é que é?  Você disse…

– Obrigratidão. Obrigado pra quem é de obrigado, gratidão pra quem é de gratidão.

– E isso funciona?

– Não. Os que são de gratidão acham que estou sendo sarcástico e os de obrigado acham ainda mais ridículo que gratidão.

– E por que você usa?

– Para irritar quem acha que o outro tem que ser grato do jeito dele. Eu sou grato do jeito que eu quiser. Dependendo do caso, posso até usar obrigratiluz.

– Deve ser difícil…

– Não tanto quanto ser transcis.

– Quem?

– Transcis. Me identifico com meu gênero biológico e com o gênero biológico oposto.

– Genderfluid, então.

– Não. Eu não fico oscilando. Não tenho que deixar de ser uma coisa para ser outra.  Não entro nessa dicotomia reducionista de ter que escolher entre ser cis ou trans.

– E a reação é…

–  Sofro bullying dos cis por ser trans e sou visto com desconfiança pelos trans por ser cis. Sem falar nos genderfluid, que me acham um farsante.

– Tenso.

– Tiro de letra, porque sou mulato. Os brancos não me acham branco, e os pretos que me acham preto não me acham preto o suficiente. Vivo num limbo identitário, porque meu mulatismo militante é visto como pelos brancos como oportunismo afrodescendentista só para pegar cota, e pelos pretos como embranquecedor e negacionista da negritude.

– Uau! Olha, foi muito bom conversar com você.  É interessante ver alguém que busca se manter longe dos rótulos e…

– Mas eu não fujo dos rótulos. Eu acho os rótulos uma coisa muito pequena. Eu já estou na fase dos letreiros, dos autidórs. Eu sou fofoda.

– Fofoda?

– Fofo e foda.

– Nossa, é raro encontrar pessoas assim, tão dialéticas. Não é todo mundo que consegue elaborar os paradoxos.

– Se quiser, podemos tomar um chopperol, que é um chopp com aperol…

– Não, agora não dá. Outro dia, quem sabe? É que sou atriz, feminista e tenho que ir posar pelada contra a objetificação da mulher. Acho que temos muito em comum…

3 comentários em “Obrigratidão

  1. Há coisa que entram na vida da gente e fazem bem… assim foi sua crônica (quase) diária! Espero que continue com livre acesso. Não sou ranzinza, apenas a velhice é cara e a gente só descobre isso quando passa a fazer turismo em farmácias e profissionais da saúde…

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  2. Eu sempre entendi a gratidão como um reconhecimento por algo recebido e para agradecer sempre disse: – obrigada. Aí alguém resolveu mexer no que estava certo e passou a usar o substantivo a torto e direito. Peguei o maior ranço, não gosto nem de ouvir e já olho torto para quem faz isso.

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