Clóvis Bornay e Evandro de Castro Lima não morreram.
Estão vivinhos da silva – um morando no Catete, outro na Glória. Vizinhos de metrô.
Evandro passou há pouco dos 100 anos; Bornay acabou de completar 104 em janeiro.
Ambos, claro, mentem a idade. Até porque aparentam menos. Uns 15 minutos menos.
São grandes amigos. Toda aquela rivalidade era coisa da mídia – ainda que realmente se odiassem. Mas um ódio construído à base de uma inveja que era 90% admiração. Um “ódio do bem” do bem mesmo, como quem diz “ah, como eu te odeio!” enquanto abraça o outro carinhosamente e lhe ajeita o colarinho.
Todo ano eles combinam de voltar aos concursos de fantasia do Municipal e do Monte Líbano, mas os concursos de fantasia do Monte Líbano e do Municipal não voltam mais.
Ontem se falaram pelo zap.
– Evandro, este ano é o seu centenário. Tem que comemorar. Isso só acontece uma vez na vida!
– Sei não, Clóvis. Ando desanimado. Não tenho mais aquele vigor de 80 anos atrás.
– Larga de ser frouxo, homem! Bota aquela sua fantasia de “Esplendor e Glória do Xá da Pérsia Diante do Czar de Todas as Rússias Numa Noite de Verão” e vamos pro Sírio e Libanês!
– Eu sou baiano, não posso me fantasiar de xá da Pérsia, porque é uma ofensa aos persas – que nem existem mais – aos aiatolás e, se bobear, a todos os russos. Sem contar que eu moro no Catete, e acho que não tenho lugar de lugar para me fantasiar de alguma coisa com Glória no nome. E vamos combinar que “Esplendor e Catete” não rola, né?
– É. Tá difícil. Eu ia de “Apogeu Sublime de um Faraó Egípcio na Suntuosa Corte da Rainha de Sabá” mas meu privilégio de branco não permite.
– Será que a gente não consegue uma fantasia aceitável? Sei lá, uma sem pena de pavão…
– Porque é apropriação plumária…
– … sem pedraria…
– Porque a mineração é predatória
– … sem paetês e lantejoulas…
– Porque são de plástico não biodegradável, e vão poluir o meio-ambiente por 400 anos.
– … sem miçangas…
– Porque evocam o colonialismo, já que eram usadas nas trocas assimétricas com as populações nativas subjugadas.
– Uma simplesinha, sabe? Tipo “Plenitude e Harmonia de Montezuma…
– Asteca não pode.
– … na Majestosa Coroação do Marajá de Jaipur”.
– Marajá de Jaipur também não.
– Vem aqui em casa, então. A gente pede uma pizza, abre um espumante, e vê se tem alguma coisa com a Hedy Lamarr ou com o Ramón Novarro na Netflix.
– A gente tem feito isso todo Carnaval nos últimos 35 anos, Evandro. Nem era Netflix; era videolocadora mesmo. E ainda se podia chamar espumante de champanhe.
– Que nome será que tem o biscoito champanhe hoje em dia?
– Sabe que nunca mais vi biscoito champanhe? Vai ver, acabou, como os desfiles de fantasia, como os blocos de sujos, como o senso de ridículo. Como eu e você e a edição especial da Manchete e d’O Cruzeiro.
– Talvez. Mas ano que vem a gente tenta de novo. Até lá, vou ver se consigo pensar em alguma fantasia inofensiva. Que não promova nenhum genocídio, não perpetue nenhuma hostilidade.
– Tomara. Vou chamar a Wilza Carla. Mais alguém?
– Clóvis, e se eu for de “Esplendor Policromático de um Imperador Bizantino Politicamente Correto na Corte Empoderada de Versalhes”, ou de …
– Esquece, Evandro. A gente morreu, e não sabe.
– É, Clóvis. Não tem mais lugar para nós neste mundo.
– A gente sempre foi hors concours, querido.
– Sempre. Quando vier, passa na farmácia e me traz um alcacélcer, que acho que este Carnaval vai me dar azia.
– Vou levar logo três, um para cada. E um saquinho de confete.
– Confete não é apropriação cultural italiana?
– É.
– Então, só os alcacélcers. E traz logo 6 de uma vez.
~
In memoriam:
Parabéns por seu humor fino e educado!
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Quanta lembrança boa você me traz, Eduardo Affonso! Uma vez vi o Clovis comprando quilos de miçangas na rua da Alfândega… tão vedete mas tão humano, assim, comprando… na nossa fantasia pra eles as coisas caiam do céu. O mundo ficou muito chato.
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Aplaudindo de pé, este texto. Sensacional…
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Sensacional!
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Que fase, heim? Sensibilidade, nostalgia na dose certa, percepção aguçada de nossas idiossincrasias.
É tudo verdade.
Genial.
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Grandes desfiles .CLOVIS , EVANDRO .MAURO ROSAS , JESUS Henrique, Marguerite Marie VENTRE , MARLENE PAIVA e tantos que abrilhantaram os bailes do COPACABANA PALACE , QUITANDINHA , MUNICIPAL , M.LIBANO E SIRIO E LIBANES .
Es
Tive o honra e o prazer de assistir ao vivo e a cores .
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Pois é, o mundo (Brasil) tá muito chato mesmo, diferente do seu texto que só me trouxe boas lembranças e alegria. Parabéns e obrigada
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Maravilhosos !!! Suntuosos !!! Carnaval que não volta mais !!
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Belo texto, Eduardo! Belo texto mesmo.
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Fantástico!
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O Brasil tem ficado chato mesmo, ando bem desgostosa com quase tudo daqui, mas vc tem sido um bom contraponto.
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Eduardo, que delicia de texto! Me trouxe tantas boas recordações… muito bem escrito, bom de ler! Gostei especialmente desse parágrafo:
–“ Sabe que nunca mais vi biscoito champanhe? Vai ver, acabou, como os desfiles de fantasia, como os blocos de sujos, como o senso de ridículo. Como eu e você e a edição especial da Manchete e d’O Cruzeiro.”
Muito obrigada!!
Thanya
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