Descobrimento em vertigem

Documentario 2

– Pessoal, conseguimos levantar o patrocínio e vamos fazer o documentário sobre o Descobrimento do Brasil!

– “Descobrimento”, não! Os nativos brasileiros já estavam aqui há muito tempo. Os portugueses invadiram o continente. Tem que se chamar “Invasão e colonização imperialista de Pindorama pelos brancos europeus”.

– Ok, depois a gente discute o título. O que precisamos agora é começar a pesquisa. Como um dos poucos documentos da época é a carta de Pero Vaz…

– Isso não é problema. Podemos criar novos documentos.

– Como assim “criar novos documentos”? Temos que nos basear nos elementos históricos – cartas, iconografia…

– Isso é um conceito arcaico, conservador. O documentário que vamos fazer é progressista. Podemos começar com as caravelas surgindo no horizonte com suas bandeiras piratas, disparando canhões, e, em seguida cortar para os índios sendo decapitados durante a Primeira Missa…

– Mas isso seria uma encenação – e não há nada que indique que índios tenham sido decapitados na Primeira Missa.

– Não é encenação. É a história real subjetiva. Milhares de nativos sul-americanos morreram no genocídio promovido pelos portugueses capitalistas. Os índios decapitados na Primeira Missa pelo padre alemão, que bebe o sangue deles, representam essas mortes e a apropriação cultural europeia.

– Mas então não é melhor chamar o filme de ficção?

–  Claro que não! É um documentário. E seguimos com Pedro Álvares Cabral violentando a filha mais nova do velho cacique moribundo e condenando o pajé trans da tribo a ser queimado na fogueira, por heresia.

– Mas será que houve autos-de-fé no Brasil? E pajés trans?

– Mesmo que não houvesse, ficaria havendo. O pajé LGBTQI+ queimado vivo enquanto os machos brancos europeus gargalham remete ao incêndio deliberado da Amazônia e à homofobia estrutural dos lusocristãos.

– Mas aí já fica uma coisa meio alegórica, não? A gente queria fazer um documentário, um lance histórico.

– História contada por quem? Pelos vencedores? Pero Vaz de Caminha, que era um lacaio do imperialismo. Temos que usar as cartas escritas pelos índios.

– Mas os índios não dominavam a escrita…

– Não dominavam porque eram dominados. Eram analfabetos porque Portugal não investiu aqui nem um centavo em educação antes de 1500. Então cabe a nós dar voz aos que foram amordaçados pelo neoliberalismo ibérico, pela elite tóxica da corte de Lisboa.

– Ok, então começamos com a decapitação dos índios, o estupro da filha do cacique, a incineração do pajé, quer dizer, dx pajx, aí são lidas as cartas dos índios…

– Quem lê são eles! Nós não temos lugar de leitura nessa história!

– E como é que eles vão ler se são analfabetos – ou pelo menos eram analfabetos em 1500?

– Você está sugerindo que algum portador do privilégio do letramento usurpe o protagonismo deles e leia as cartas?

– Ok, eles leem as cartas e então…

– Então entrevistamos alguns índios escolhidos a dedo, e gravamos a cena de uma índia idosa com um bebê no colo, se arrastando pelo Saara, ou pela Namíbia – ou, se a verba não der, por Atacama mesmo – e eu narro, com voz chorosa, que foram os golpes – golpes de machado, no caso – que destruíram o Brasil. Entra um pôr do sol bem vermelho e sobem os créditos ao som da Internacional Socialista em ritmo de kuarup.  Fim.

– Não entrevistamos nenhum português?

– Não precisa.

– E depois?

– Depois a gente arruma um agente, uma distribuidora, um canal de estrímim e inscreve no Oscar.

– Aquele prêmio da indústria hegemônica cultural estadunidense?

–  Essa parte não precisa problematizar. Bora fazer o doc?

15 comentários em “Descobrimento em vertigem

  1. Adorei o final, a gente inscreve essa estória progressista empoderada no OSCAR, aquele prêmio da indústria hegemônica cultural estadunidense!🤣🤣🤣🤣

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  2. Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência… Bravo, Eduardo Affonso!!!

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  3. Para começo de conversa, o primeiro europeu a pisar no Brasil foi o navegador espanhol Vicente Yáñez Pinzón, que desembarcou no Cabo de Santo Agostinho (Pernambuco) em 26 de janeiro de 1500. Trata-se de um feito comprovado, amplamente documentado, e reconhecido pelas principais enciclopédias do mundo (Britannica e Barsa). Pinzón é o verdadeiro descobridor do Brasil: foi através dele que os europeus descobriram a América do Sul.

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