Sequestrando a narrativa

sequestro

O governador Marcelo Freixo chegou por volta das 9h à Ponte Rio-Niterói, a bordo de um veleiro movido a energia solar – que demorou mais que o previsto porque o dia estava nublado e sem vento. Sua assessoria divulgou que o deslocamento gerou crédito de carbono.

Mais cedo, a Light (agora incorporada à Secretaria de Segurança Pública) havia espalhado postes por toda a Ponte, para evitar novos sequestros.

Agentes se posicionaram em pontos estratégicos com livros de filosofia e história. Como os atiradores de elite foram dispensados no início do governo, seus substitutos, os atiradores das classes marginalizadas, acabaram acionados para a eventualidade de uma ação mais delicada, sendo municiados com teses da UFF sobre ideologia de gênero e surubas em banheiros públicos de supermercados.

Uma ciranda foi organizada em torno do ônibus, com todas, todos e todes de mãos dadas e pés descalços, cantando “Imagine”, abraçando o coletivo e pedindo Lula Livre e soltando pombas brancas.

Uma deputada do PSOL sugeriu que o sequestrador não usasse gasolina, mas etanol, que é mais sustentável, e que os reféns não tivessem as mãos atadas com lacres sintéticos, levam séculos para se degradar e podem poluir os oceanos com microplásticos. Em troca, ofereceu cordas de fibra de cânhamo produzidas artesanalmente numa comunidade da Praça São Salvador.

Numa plenária, realizada na praça do pedágio, os comitês de Cidadania, Historicidade, Horizontalidade de Gestão, Inclusão Trans e Anticanabisfobia deliberou que as ações de resgate, se necessárias, deveriam ser pautadas pelas diretrizes de gênero, etnicidade, empoderamento lésbico (com ênfase na não performação da feminilidade) e participação em ovulários de sororidade e encontros de detox da masculinidade.

Um comitê elaborou uma pesquisa (patrocinada pela Capes) para definição da escala pantone dos cidadãos em situação de ônibus e do marginalizado em situação de máscara e garrafas pet supostamente inflamáveis. Esse estudo permitiria fornecer subsídios à equipe de negociadores para determinação da prioridade daquilo que a extrema imprensa burguesa insistia em chamar de “libertação de reféns”.

Foram feitas propostas de que os veganos deveriam deixar a condição de ônbus para a condição de ponte antes dos demais, gerando intenso debate com os que lembravam que o pagamento da dívida histórica com os afrodescendentes deveria ter precedência. Trabalhadores em situação de informalidade, mulheres oprimidas pelos padrões estéticos da sociedade e pela balança, e minorias sexuais também foram pontuadas, até que o próprio governador lembrou que a verdadeira vítima era o afrodescendente portador de máscara, que se levantara às 5 da manhã, possivelmente sem um desjejum como aquele do Copacabana Palace que ele mesmo havia acabado de tomar.

Foi organizado no vão central um show de solidariedade à vítima da sociedade branca opressora que mantinha o controle do ônibus, com participação de Zélia Duncan, Maria Gadú, Anavitória, Tico Santa Cruz, apresentação de Tatá Werneck e Bruno Gagliasso, e performances das axilas de Bruna Linzmayer, com fundos revertidos para a ONG SVS (Sequestradores Vítimas da Sociedade) e transmissão ao vivo pela GloboNews.

Após 14 horas de negociação, com fornecimento de quentinhas veganas ao sequestrador, entrevistas exclusivas à Mônica Bérgamo e à Carta Capital, os cidadãos reclusos no coletivo se amotinaram, tomaram a chave, deram um cavalo de pau e retornaram a São Gonçalo, sob saraivadas de livros da Márcia Tiburi, Foucault, Boff, Gramsci, Nina Lemos, Althusser, Judith Butler, Bagno, Habermas, Chauí, Sartre e Kéfera.

Um dos líderes do motim a bordo declarou pelo zap que ninguém aguentava mais ouvir o Programa da Fátima Bernardes (no ar das 7 da manhã às 7 da noite na tevê de bordo) e que, por unanimidade, preferiam se jogar no mar. Antes de despencar pela mureta, libertaram o sequestrador – que foi recebido com soquinhos no ar pelo Governador Freixo e convidado a jantar no Fasano.

A direita problematizou a comemoração do governador e achou falta de decoro os soquinhos no ar. Em Nota Oficial, o Palácio Guanabara declarou que a missão foi um sucesso, com o salvamento do sequestrador e que manda condolências à empresa que perdeu um ônibus.

26 comentários em “Sequestrando a narrativa

      1. Infelizmente mostra a realidade de um pais dividido onde imbecis não querem o desenvolvimento para transformar numa Venezuela.

        Curtir

  1. Tentei rir. O texto é ótimo! Mas saber que não é ficção me assusta. Eles estão por aí e tem o seu eleitorado. Vou ter pesadelos com esta possibilidade de futuro…
    Eu dirijo o ônibus!!!

    Curtir

  2. Vou avisando que sou prolixa. O melhor de tudo é que o que escreveu, não é ficção. Eles são assim mesmo ridículos de doer. Tenho ojeriza desse pessoal, com conhecimento de causa. Fiz um free lance no gabinete de uma deputada estadual, há alguns anos. Foi a primeira experiência. Anos depois, quando estava na direção de uma escola para crianças especiais, éramos uma associação de pais, como até hoje, é, com poucos recursos, pedimos auxílio da prefeitura, cuja prefeita era do PT. Ai começou a danação. Tinha até uma freira na turma. Nada contra elas.
    Chegou monte de bicho grilo, já àquela época fora de moda. Fumavam como bons viciados. Sem disciplina, sem horário, sem coisa alguma. Passavam o dia em reuniões intermináveis. Isso durou duas semana. Eu e outras mães, com toda gentileza e educação, pedimos as chaves dos portões, e os pusemos pra correr. No dia seguinte, parou um caminhão da prefeitura e levou toda a merenda das crianças. O pior de tudo, era a prepotência e a arrogância própria dos que pularam etapas para chegar a algum lugar. Farão o diabo, para conseguirem o querem
    Em Tempo: Depois de duas prefeituras do PT, nunca mais Santos elegeu nenhum deles. Só uns poucos vereadores, que foram rareando e hoje, se tiver 2 é muito. Ufa! Precisava desabafar. Obrigada.

    Curtir

    1. Ainda a cama, são 07:45 e despertei às 06:45. Não consegui voltar ao soninho e precisava. Mas tive a brilhante idéia de ler algo seu pois com as férias havia perdido muitos textos. Começar o dia na cama a rir demais, é muito bom.
      Na “saraivadas de livros” e seus autores, as risadas já me abriram o apetite para o pequeno almoço.
      Mente brilhante Eduardo.

      Curtir

Deixe um comentário