Newspeak

gratidao

A epidemia de “gratidão” ainda não passou – e o gráfico do Google Trends prova isso.
É o Newspeak – a Novilíngua – em ação.

Mas, se é pra fazer, vamos fazer direito.

Se trocou o “Obrigado” por “Gratidão”, tem que mudar o “De nada” para Por tudo”.

E, de agora em diante, nada de “Por favor”.
“Favor” pode ser um proveito, uma vantagem.
Prostitutas prestam favores sexuais. Políticos trocam favores.
Usemos “Por gentileza”, que é mais gentil.

Esqueçamos o “Com licença”.
“Licença” lembra licenciamento de veículo no Detran, licença médica, licença ambiental.
007 tinha licença para matar.
Licença é uma permissão (que lembra permissividade), uma autorização (que lembra autoritarismo).
Doravante, por um mundo melhor, pediremos “Com consentimento”, que é uma expressão com … sentimento.

Sim, há sentimentos ruins. Mas, neste caso, mentalize sentimentos bons, e pronto.

“Desculpe” traz embutida a palavra “culpa”.
Esqueça.
Peça “Perdão”.

“Que pena!” tem um subtexto de penalidade, de penitência.
Diga “Compaixão”.

“Ô dó!” tem algo de dor.
Dá um pouco mais de trabalho, mas opte por “Sinto-me consternado(a)”.

“Lamento muito” parece lamúria. Se um abraço ou um tapinha nas costas não resolverem, faça um coraçãozinho com a mão, expressando ternura.

“Adeus”, nunca mais.
É ofensivo aos ateus e discrimina os politeístas, para quem teria que ser dito “adeuses”.
Ofende também os cristãos, ao invocar um santo nome em vão.
“Até” tá de bom tamanho. E não dá aquela impressão de que a separação seja para sempre.

Chega de expressões negativas!
“Como tem passado?” evoca o que já passou, e o que importa é o futuro.
“E aí, chefia?” traz implícita uma inferioridade hierárquica, uma normalização das relações de poder.
“Sempre às ordens”, então, nem se fala.

“Nos vemos qualquer hora dessas” agride os portadores de deficiência visual.
“Sou todo ouvidos”, os deficientes auditivos.
“Que tudo corra bem”, os com mobilidade reduzida.
“E aí, beleza?”, os que não atendem as expectativas estéticas da sociedade.
“E aí, tranquilo?”, os dependentes de gardenal.
“Muito prazer”, as frígidas.
“A gente se esbarra”, os estabanados.

Nesses casos, é melhor não falar nada.
Sorria – sem mostrar os dentes. E saia de fininho, mas com a certeza de ter transformado o mundo à sua volta num lugar melhor.

3 comentários em “Newspeak

  1. As palavrinhas mágicas terão que ser revistas no jardim de infância. Imagine a criançada se comunicando com os coleguinhas e dizendo gratidão, por gentileza e perdão ou compaixão. Acho cômico, ou melhor, hilário, porque burlesco não teria boa aceitação.

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