Arial 10

caligrafia

Descobri que não sei mais escrever à mão. Virei analfabeto caligráfico: só sei assinar meu nome, e olhe lá. A descoberta se deu por acaso: enquanto tomava o café da manhã, me ocorreu uma ideia que achei que renderia um texto, mas como escrever se não havia nenhum computador por perto? Sim, eu tinha papel e caneta – só que em questão de segundos ficou claro que a coisa não ia funcionar. Minha mão se arrastava em câmera lenta, deixando um rastro de garranchos para trás – bem diferente da rapidez a que estou acostumado com o teclado e da beleza da minha letra no monitor (caprichada, tipo Arial, corpo 10).

As ideias começaram a me atropelar. Minha cabeça já tinha terminado o primeiro parágrafo, ia célere rumo ao segundo, e lá estava eu, ainda rastejando com a caneta num arremedo de escrita, tentando arrematar a primeira frase.

Aprendi a digitar tão rápido quanto penso (ou a pensar na velocidade em que digito, sei lá), e agora minha mão pesava, me abrigando a reduzir o passo, a pensar ANTES de escrever – coisa que todo mundo que escreve devia fazer, mas que eu definitivamente já não sei mais como se faz. No computador, a palavra praticamente se materializa à minha frente na medida em que surge a ideia – e depois é que vou ver o que fazer com ela. Como é que se faz isso à mão? E não sei se alguém já se deu conta disso, mas a bic não tem corretor ortográfico!

Na faculdade de Arquitetura, todos, de uma forma ou de outra, acabam tendo a mesma letra. Minha mãe chegou a me interpelar uma vez, perguntando por que é que eu estava mandando cartas para mim mesmo (a letra no envelope endereçado a mim era igualzinha à minha, e eu mesmo teria dificuldade em saber se era minha ou não). E só se usava letra de imprensa. A cursiva, que lutei anos a fio para aprimorar, a custa de cadernos e mais cadernos de caligrafia, foi definitivamente aposentada então. Meus rebuscados erres, meu elegantes éles, meus sinuosos ésses, tudo jogado fora, em nome de um estilo mais adulto, mais estiloso.

Na vida profissional, a máquina de escrever e, depois, o computador, redigiram o atestado de óbito da cursiva, agora reduzida a garatujas que nem mesmo eu consigo entender. Mas houve ganhos: meu G e meu J minúsculos viraram uma coisa só, acabando com a eterna dúvida sobre como escrever laje, jiló, jeito, viagem, beringela (ou será berinjela?). Infelizmente, ainda não consegui nada similar para o Ç e o SS, mas acho que não demora para que todas as consoantes tenham o mesmo aspecto (o que já acontece com as vogais), e aí os problemas de ortografia estarão resolvidos. Restará o desafio, muito maior, de entender o que está escrito. Mas isso fica para depois.

Claro que de nada serviu a inspiração matinal: o tal texto morreu antes de concluída a primeira frase – e nem sei mais do que se tratava. Temo que vários outros textos venham a ter o mesmo destino, já que bani da minha vida pessoal o computador e a internet. Nada mais de café da manhã conectado, com gotas de geleia e farelo de pão no teclado. Nada mais de sono adiado, navegando à deriva. Nunca mais da velha desculpa de ligar a internet “só pra ver os e-mails” e ficar folheando saites os mais absurdos. Não. A internet é a sereia dos tempos modernos: te atrai e te arrasta ao fundo. Melhor não tê-la por perto, ao alcance de uma senha. E para não cair em tentação, só não tendo sequer computador em casa. Mas sem o computador, como escrever?

Terei que me realfabetizar para a escrita manual. Ainda existirão cadernos de caligrafia? Conseguirei escrever tão rápido quanto exigem os meus neurônios? Será que ainda tenho na estante aquele velho Aurélio, já desencadernado, para substituir o google e o corretor? Mesmo que não o tenha descartado, ele é anterior à bendita reforma ortográfica, e agora tão obsoleto quanto os do meu avô, que ainda definiam pharmácia, lyrio, commércio, facto, omnibus.

Sem contar que, depois que escrever à mão, terei que digitar tudo no computador para postar aqui – pelo menos até juntar coragem para criar um blogue. Não, é trabalho demais. Melhor manter a mente ocupada quando não houver computador por perto. As ideias, se quiserem virar texto, que não apareçam na hora errada. Que me esperem chegar ao escritório e haver uma brecha no trabalho, um pouco de silêncio, e uma necessidade incontrolável de, como agora, escrever um pouco sobre o nada.

 

(originalmente publicado em 29 de novembro de 2012)

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6 comentários em “Arial 10

  1. N tinha lido.Tb sou arquiteta e aprendi a escrever com aquelas letrinhas.Letra cursiva natural e tipo foto sem fotoshop.abcs

    Enviado do meu smartphone Samsung Galaxy.

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  2. Acontece o mesmo comigo, Eduardo! Quando tento escrever a mão, parece que esta se transformou em chumbo. Achei que só acontecia comigo.

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  3. Escrevo à mão, muito e bem, pelo menos eu acho, e tenho uma linda letra de personalidade forte. Meus filhos falam que não entendem nada do que está escrito, mas é papel de filho contrariar a mãe, né? rss. Recomendo aprender taquigrafia e arrumar uma secretária pra andar com você, aí é só falar e ela registra tudo e passa pro computador. Mas a delícia de escrever os próprios textos é imensa e ir modificando enquanto as ideias vão brincando na mente… Super entendo. Pena que perdi tanta coisa sua, te conheci apenas esse ano, mas esse blogue está me deixando a par das postagens mais antigas e amo te conhecer cada dia mais. Amo especialmente o Eduardo menos político e mais criativo com coisas do dia-a-dia. Beijão.

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    1. Obrigada pelo seu comentário. Estamos pouco a pouco resgatando todos (ou pelo menos os melhores, que também são muitos) os textos do Eduardo e publicando aqui. Quem sabe um dia também os textos de antes da era digital, que devem estar guardados em muitas e muitas gavetas.
      Um grande abraço,
      Neysa Miller – webmaster

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