
Minha mãe me acordou.
– Vá chamar a parteira.
Com certeza já tínhamos telefone, talvez a parteira é que não tivesse.
Desci as escadas, dobrei à direita, passei pela praça, pela matriz, desci a Rua do Comércio, atravessei a linha, tomei o rumo do Bairro de Lourdes.
Daí a pouco voltávamos, eu e a parteira. Fui dormir de novo e só acordei de madrugada, com um choro de criança.
Minha mãe estava deitada, suada, com um bebê nos braços.
Não me lembro de ter sentido nada, de ter dito nada. Era só um bebê, ainda sem nome, que chorava. Um menino (mais um! e ela queria uma menina).
A parteira voltou para casa sozinha, ou chamou um táxi, ou dormiu por lá mesmo, não sei.
Meu pai, como nos quatro partos anteriores, não estava por perto. Não estava em casa, nem na mesma cidade.
Voltei a dormir e acordei com o dia já claro. Vi um dos meus irmãos, de 4 anos (até a véspera, o caçula), de pé no parapeito da varanda (nossa casa era imensa, e ocupávamos os quartos do segundo andar). Tinha uma toalha de banho amarrada no pescoço, como quando brincávamos de super-herói.
– Pula. Você voa – insistia meu outro irmão, um ano mais novo que eu.
E ele tinha medo de não voar, e não pulava.
– Pula!
E estava prestes a ser empurrado para o voo quando minha mãe surgiu na porta, arqueada como se tivesse 100 anos.
Agarrou pela toalha o que estava no parapeito e pelos cabelos o outro, o que o instigava a voar.
E bateu nos dois.
Até se cansar. Até não conseguir mais levantar a mão.
Então voltou para a cama, se apoiando nas paredes, abraçou o recém-nascido e chorou.
Chorou mais que todos.
Chorou pelo filho que ganhara horas antes e pelo que, por pouco, não perdera horas depois.
Chorou por estar sozinha, com 5 filhos em casa. (Talvez estivessem ainda ali a parteira, ou alguma das empregadas, não sei. Mas era o choro de quem estava visceralmente sozinha.)
Chorou por estar dolorida do parto. Chorou pela caminhada trôpega até a varanda. Chorou pelo esforço do salvamento e da surra.
Chorou porque sabia que não poderia morrer pelos próximos 20 anos, pelo menos, até o novo caçula, o temporão, estar “criado”.
Chorou por tudo que não tinha chorado e não tornaria a chorar – não creio jamais tê-la visto chorando, antes ou depois.
Chorou porque era uma mulher que não chorava.
Isso foi há 51 anos.
Num 19 de julho, como este de hoje.
(para o Hélder, o que nasceu; o Hubbley, o que não voou; e para minha mãe, que talvez tenha esgotado ali todas as lágrimas)
Meu deus como entendo sua mãe! Nós mães qd temos filhos não nos sentimos no direito de morrer eqto eles não crescem e nem sentimos o direito de perde-los. Uma mãe pode ter dez filhos mas se perde um acredite, não tem mais nenhum. Sempre digo aos meus, sejam bons filhos. Deixem eu ir primeiro.
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Sua mãe está viva ? Homenagem maravilhosa !!
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Essa história resume as histórias e emoções de milhões de mulheres no Brasil e ao redor do mundo. Texto brilhante e emocionante, um presente para todas nós e uma linda homenagem à sua mãe. Obrigada!
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Que beleza de texto!!
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Me fez chorar. Belíssimo texto como quase sempre! Obrigada. Ana Maria
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Meu Deus, com certeza, esse seu texto é o MELHOR, que já li. Belíssimo, me deixou sem palavras. Parabéns!!!
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Mais um texto maravilhoso!
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Belo e comovente texto!
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Lindo! 👏👏👏💖
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Chorei…mas chorei profundamente. Quem é mãe e nunca teve esse choro solitário, sem se sentir no direito dele…?
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Há um termo mais conhecido nos grupos de apoio de mães solteiras: “pai quando dá”.
Junto a um “pai quando dá” há, muitas vezes (talvez na maioria e ainda bem que seja assim) avós que dão além, tios que se dão mais, filhos (mais velhos) que trocam parte da infância pela maturidade do vigiar, ensinar, apoiar.
Há mães solteiras casadas, sem dúvida há.
Quanto aos “pai quando dá”, infelizmente, são muito parecidos e, geralmente, não dá. Escolhem deixar que outros assumam o seu papel.
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