Escrevi “cozer”, e não “coser”, num texto. Ninguém reparou – ou, se reparou, ficou sem jeito de avisar.
“Cozer” é cozinhar; costurar é “coser”.
É bom quando alguém aponta um erro, e impede que ele se perpetue.
Mas há casos e casos. Às vezes erro porque quero, porque o errado me soa melhor, e eu o promovo a certo.
Mussarela ou muçarela? O dicionário pode dizer que a grafia correta é a segunda, mas meus olhos, meus ouvidos e meu paladar discordam veementemente.
Se na prateleira houver uma embalagem de mussarela e outra de muçarela, compro a primeira. “Muçarela” não dá pra engolir. Não desce.
Não foi sem resistência que passei a dizer e escrever “caverna” e “cuspe”, em vez de “gaverna” e “guspe”, lá pelo primeiro ano primário. Quem inventou que guspe e gaverna se escreviam com C é porque nunca guspiu ou engatinhou por gavernas no fundo do quintal.
Há “erros” que não são erros: são variantes. Ir “na rua” e “no cinema” é muito diferente de ir “à rua” ou “ao cinema”, o que exigiria tomar banho, pentear o cabelo, botar roupa de domingo.
Andar “de cavalo” e “a cavalo” – tem comparação? Num você monta e vai, no galope; no outro tem que se paramentar todo, e seguir empertigado, como se escoltasse a carruagem real.
Birra com a empregada ou com a tia se faz dizendo “você não manda ni mim”. É nesse “ni” que se peita a meia-autoridade e a gramática de uma vez só. Aí nasce o verdadeiro “cavaleiro que diz ni”, muito superior ao que se sujeita a dizer “em”.
“Nós tudo” é muito mais inclusivo que “todos nós”. “Tudo” não deixa dúvida: somos todos nós e tudo o mais que houver.
Era preciso um dicionário à parte, uma gramática exclusiva para esse idioma no qual o que conta é o valor afetivo (e efetivo), não a etimologia ou o que pontifica aquela senhora chata, a Norma Culta.
D. Norma nunca entendeu que “dê-me um copo d’água” é uma ordem, e “me dá um copo d’água” é um pedido. Se não são a mesma coisa, não podem ser ditos da mesma maneira.
D. Norma não sabe que “eu irei” é coisa de político em cima de palanque, prometendo tudo para um futuro longínquo, hipotético e improvável. O futuro imediato das coisas do mundo real se resolve é no “eu vou ir”. Ou no “vou vim”, que é das locuções mais lindas que o idioma poderia ter inventado.
D. Norma não tem mais o que fazer na vida. Exige que se escreva “maisena” quando qualquer mingau que se preze é feito com Maizena. Não percebe que “peneu” tem mais ar que “pneu”; “tinha chego” é porque estava com tanta pressa que de outra forma não teria chegado; “tinha pego” indica que pegou com mais apego do que se tivesse pegado.
D. Norma não vê isso. Pode até ser culta, mas é cega. E surda.
Se a voz do povo é a voz de Deus, Deus deve de falar assim, deixando cada palavra buscar na língua, no lábio, no palato, a consoante ou a vogal que melhor se encaixe.
Se você se arrepende, arrepia, arredonda, por que vai abrir mão de arreparar, arrepetir, arrenegar?
Pode corrigir sem dó se eu trocar de novo “coser” por “cozer”, “intercessão” por “interseção”, “tachar” por “taxar”. Mas se vir mussarela, cucuruto e mixirica, deixe quieto. Nessa hora eu não aceito argumento e luto até a morte pelo direito inalienável de permanecer errado.
(publicado originalmente em 17 de abril de 2018)
Ainda que desagrade a dona Norma Culta, a verdade verdadeira tem de ser dita: ninguém faz erro ao falar a língua materna. Ninguém.
E a língua materna de todos nós não é essa que a gente lê nos jornais e na qual escrevo neste momento. A língua materna é aquela que aprendemos em casa e na qual nos exprimimos quando estamos à vontade. Dispensa consulta ao dicionário. Permite ao pensamento fluir sem travas.
O português, língua oficial do país, só nos vem a ser ensinado na escola, a partir dos sete anos de idade. Tem sabor de língua estrangeira, sabor que nos acompanha até o fim da vida. Demanda cuidado no falar e no escrever. Não sendo nossa língua natural, nos deixa inseguros. Pisamos ovos. Ao escrever em português, frequentes consultas ao dicionário são necessárias.
No dia em que a diglossia “de nós tudo” for oficialmente admitida, as coisas vão começar a entrar nos eixos. Teremos então duas línguas oficiais reconhecidas: o português e esta maravilha – ainda sem nome – em que nos exprimimos sem ter de torcer a boca.
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O português parece muito difícil porque, ao falar, é como se o brasileiro usasse vários dialetos. Aí, vem o Eduardo Affonso e demonstra a beleza dessa língua todos os dias.
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Corre-se o risco da hipercorreção.
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E eu ainda vou mais longe: mozzarella, como aprendi no Istituto Italiano di Cultura e na Dante Alighieri em Roma. Como ofender uma fior di latte chamando de muçarela?
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Eu aceitei a Muçarela, mas ainda é estranho hahahahaha…. mixirica, mexerica, mexirica ainda não descobri como D. Norma prefere, eu gosto da primeira hahahaha… Assim também prefiro cucuruto e suvaco (sovaco não dá).
Mas serei (ou vou ser) sincero, tinha chego ou tinha pego, doem, tenho birra dessas expressões que na verdade tentam ser cultas…. tipo estar pegando.
Ótima aula.
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