Os sinais de intolerância que temos tido não são nada auspiciosos.
Uma ameaça aqui, uma manipulação ali, um movimento suspeito acolá.
E os abutres nos sobrevoando, em círculos.
Auspício era, originalmente, isso: interpretar o que os deuses queriam nos dizer através do voo das aves.
Uma águia que pousasse no ombro da estátua de César, em Roma, não significava uma águia precisando tomar fôlego ou ir ao toalete: era claramente uma tuitada de Júpiter.
Para traduzir a mensagem divina, consultava-se o áuspice, o expert, o adivinho.
Não se iniciava uma guerra, ou se contratava um casamento – que também é uma atividade bélica – sem “tomar os auspícios”. Se desfavoráveis, guardavam-se as lanças e os bem-casados, e aguardava-se ocasião mais propícia.
A menos, claro, que você fosse um Júlio César, para quem não havia auspício ruim: ele criava uma narrativa que lhe fosse vantajosa e tanto fazia que a águia voasse para a esquerda ou para a direita, sozinha ou em bando, em estilo crawl ou cachorrinho, ele ia em frente. Foi assim que conquistou meio mundo.
Hoje, para saber o que nos reserva o futuro, consultamos os Antagonistas, os Catraca Livre, os Mídia Ninja, os MBL. Eles é que interpretam o significado de uma revoada de patos amarelos tomar a Avenida Paulista, um tucano abrir o bico, um defensor de arapongas ficar de bico fechado.
Auspícios nunca saíram de moda, mas acabaram perdendo mercado para uma nova ciência, a hepatoscopia.
Nela, os adivinhos (os arúspices) decodificavam a vontade divina pela análise do fígado de aves – e de touros, carneiros, cabritos.
Porque o fígado costuma falar mais alto que o coração.
Na aruspicia, coitado do mensageiro. Era estripado vivo – ou, no caso dos quadrúpedes, levava uma marretada, e até o lado para o qual pendesse tinha um significado específico. Mais ou menos como acontece hoje nas redes sociais quando se compartilha alguma coisa sem checar a fonte.
Um pouco menos invasivos (e dolorosos) eram os augúrios, que consistiam em decifrar o canto das aves – daí ainda falarmos em “aves de mau agouro”.
Um general, por exemplo, não pode dar um pio sem que os agourentos de agora prenunciem intervenção militar.
Uma presidente do Supremo afirma que todos estão sob as penas da lei, e ali está um sinal inequívoco de que não vá aguentar o tranco.
Não é porque acabei de acabar de ler o fabuloso “A vida dos doze Césares”, de Suetônio (de onde tirei toda essa cultura inútil) mas acho que os abutres que andam rondando cadáveres recentes – e mesmo cadáveres adiados – mereciam mais atenção dos áuspices, áugures e arúspices de plantão.
(publicado originalmente em 20 de março de 2018)
Só para enfatizar, abutres têm garras planas, não pegam animais vivos.
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