
Um estudo publicado na Science levanta a hipótese de uma mudança na dieta ter sido a responsável por nossa capacidade de pronunciar as consonantes “f” e “v”.
Se você vir num filme ambientado na pré-história um chef neandertal dizendo ao sous chef
– Flávio, faça o favor de ferver as favas.
esqueça. É caô.
Se houvesse um sous chef troglodita chamado Flávio, pode ter certeza de que logo lhe arrumariam um apelido. E outro emprego, porque trogloditas não apenas não ferviam favas para lhes dar textura e crocância como, se tivessem que batizá-las, mandariam às favas a palavra “fava” (e o próprio sous chef Flávio) e escolheriam para eles outro nome qualquer, com muito GRRR e MMMM.
Não que fossem agressivos ou mimizentos: é que a dieta os impedia de levar o dente ao lábio e articular as consonantes labiodentais.
A agricultura, com alimentos menos duros que a carne crua de mastodonte, é que teria introduzido mais vegetais no nosso cardápio, alterando nossa dentição e a capacidade de articular novos sons.
Nessa linha de raciocínio, ouso inferir que deva ser a falta de sucrilhos e manteiga de amendoim no café da manhã que me impede de dizer da forma distinta “coffee” e “cough”. Com café com pão e manteiga, vira tudo “cof”, e cabe ao interlocutor, pelo contexto, deduzir se estou tossindo ou pedindo um espresso caramelo macchiato.
Com marshmellows e tortas de maçã (daquelas que a vovó Donalda colocava para esfriar no parapeito da janela) eu até seria capaz de pronunciar “thought”, “through” e, quem sabe, se a torta tivesse aquele reticulado de massa em cima – “throughout”.
Só com arroz, feijão preto, angu e couve no menu, sem chance.
A teoria abre imensas perspectivas para os linguistas. Seria o excesso de variedades de queijos que impediria os franceses de usar paroxítonas? O volume de massas no cardápio e o sabor do molho da Nonna manteria os italianos sempre de boca cheia, obrigando-os a falar com as mãos? Haverá correlação entre o excesso de quetichupe no biguemeque e a inapetência dos americanos para falar qualquer palavra terminada em “ão”?
Com a abertura dessa nova linha de pesquisa, talvez milhões de alunos de Letras das universidades federais se sintam desestimulados de concluir seus TCCs sobre opressão linguística, suas teses de mestrado sobre a ideologia de gênero nos substantivos epicenos e seus pós-docs no exterior sobre pautas identitárias aplicadas às fricativas palatais.
Se investirem neste novo filão, logo descobriremos se é o Biscoito Globo que faz o carioca chiar, se o sabor sublime do pão de queijo é o que faz os mineiros engolirem junto os finais das palavras, se é a pimenta que leva os baianos a falar mais devagar para dar tempo de passar a ardência, e se o leite condensado no pão é ou não responsável por fazer a pessoa insistir em falar “cüestão”, e usar “talquei” como ponto final.
(A pesquisa original é séria e foi feita na Universidade de Zurique. Eu, que sou linguista de orelhada, sempre soube que ou você come farofa ou fala a palavra “farofa”. As duas coisas ao mesmo tempo, não dá. Experimente fazê-lo, de preferência na frente das visitas, e depois me conte o vexame. No pacotinho de farinha de mandioca devia vir um alerta: “Farofa faz mal para a labiodental “F”).
(originalmente publicado em 17 de março de 2019)
Perfeito. Deve ser o chucrute que fez os alemães transformarem um envelope aéreo em briefumschläge für luftpost e deve ser o excesso de paprika que faz os húngaros falarem um idioma impronunciável por qualquer cidadão não húngaro.
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Amei estar aqui! Agora com mais tempo de saborear suas palavras!
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Quase aprendi mais com a sua crônica do que em dois anos do estudo de Linguística na Universidade.
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Excelente! Saboreei ao ponto de reler parágrafos! Ah! eu com um texto desses no tempo em que eu tinha turmas no colégio! E vou além: me vejo “convocando” colegas de outras disciplinas para um trabalho interdisciplinar…
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Muito bom! Coffee se fala cofiii, cough se fala cofff, iu nou! 🙂
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