Não, blagodarya

blagodarya

“A cada R$ 150,00 em compras você concorre a uma viagem inesquecível de 7 dias com destino a Natal – com direito a acompanhante!”, li agora há pouco, na porta do shopping.

Será que a cada compra ACIMA de R$ 150,00 não dá pra concorrer a um prêmio melhor? Por exemplo… uma viagem SEM direito a acompanhante?

Viagem mesmo, de verdade, pra valer, pra ser digna desse nome, tem que ser sozinho. Acompanhado você vai lá, passeia, dá uma volta – mas não viaja.

“Viajar (é) perder países / ser outro constantemente”, já disse o Fernando Pessoa, que sabia como ninguém da maravilha que é poder ser muitos, ser todos.

Como ser outro acompanhado de alguém que te conhece, e vai fazer cara de espanto se você começar a se permitir ser seus outros eus (no caso, seus outros vocês)?

O verbo viajar tinha que ser defectivo, só conjugável na primeira pessoa.

Eu viajo, tu transitas, ele se desloca. Nós nos estressamos (ou deixamos de fazer o que queríamos para acompanhar o/a acompanhante e não perder a amizade), vós peregrinais, eles fazem turismo.

Para viajar de fato, há que deixar para trás os problemas. Ou seja, você fica. Quem vai – um passo adiante da mochila, usando seu passaporte (ou sua identidade) – é uma das suas alternativas, aquela que veio de fábrica com todos os opcionais de felicidade, e que não costuma ser compatível com o dia a dia.

(Parêntesis: Viajei, uma vez, sozinho, à Bulgária. Não falava a língua (só uma palavra: blagodarya, que quer dizer “muito obrigado”). Por duas semanas, não conversei com ninguém, não compreendi nada do que ouvia. Desenhava coisas no guardanapo para pedir comida no restaurante (não dava nem para apontar no cardápio, porque era tudo em cirílico, ininteligível). Nesse período, meu único interlocutor – meu porto, minha pátria – foi Carlos Drummond, autor de “Farewell”, o livro que carreguei para ler na emergência de bater saudade de mim. Vi turistas em bandos, aos pares, em Koprivshtitsa, em Plovdiv, em Rila, em Nessebar, e senti certa compaixão – coitados, tão acompanhados!)

Procure no dicionário o significado de “viajar”. Tá lá, com todas as letras:
Partir, ir, sair;
Alucinar-se, delirar, desvairar:
Devanear, fantasiar, imaginar.
Sonhar.

Ganhei 3 cupons no shopping. Não conheço Natal; pode ser divertido passar uma semana por aqueles lados, comendo caju e tapioca. Descendo duna de esquibunda e sonhando.

Porque até dá para dormir junto. Mas sonhar é algo que só se faz sozinho.

Um comentário em “Não, blagodarya

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